Alvaro Costa e Silva e Reinaldo Moraes, Jornal do Brasil
RIO - Como Brás Cubas, protagonista do clássico de Machado de Assis, Eulálio d'Assumpção, o de 'Leite derramado', quarto romance de Chico Buarque, revê a vida, a partir de seu fim. Não está morto, como o outro, e sim, moribundo. Mas conta suas memórias à maneira tateante dos personagens típicos do Bruxo. Buarquiano ou machadiano, o romance é dissecado por dois diferentes olhares neste 'Ideias'
Com o Brasil nas mãos
Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana e da “fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra”, jaz na cama hospitalar da pobre enfermaria em que o internaram depois de uma fratura grave. Eulálio fez 100 anos. Fora de combate na vida, o espevitado ancião monodialoga em alguns capítulos com uma interlocutora nula e muda, uma moça, talvez uma enfermeira (talvez não), improvisada em depositária de suas extensas memórias vincadas a fogo pela incurável saudade de sua Matilde, antiga esposa para sempre amada, desaparecida de sua vida quando se achava na flor moreníssima dos seus 17 anos. Nunca vemos a suposta enfermeira que ouve e anota as histórias de Eulálio, mas, logo na primeira página, ele promete se casar com ela na tal fazenda da sua feliz infância.
Em outros capítulos, a interlocutora/ouvinte é a filha única de Eulálio, já octagenária. Outras vezes ainda esse jorro de lembranças de vida, embaralhando histórias de antepassados e descendentes, simplesmente escapa de sua cabeça sem destino certo, mas indo, de todo jeito, bater nos ouvidos afortunados do leitor desse encantador Leite derramado, quarto romance de Chico Buarque, que acaba de sair pela Companhia das Letras.
Neste ponto, quem não quiser perder tempo com resenhas, pode jogar o jornal pro alto e sair correndo para comprar o livro. Depois de ler, volte aqui, que eu estarei esperando. Isto é, se não embrulharem alguma tainha comigo antes. Começando a leitura hoje, sábado, na segunda você estará com o livro, de pouco menos de 200 páginas, devidamente saboreado e a cabeça recheada de ótimas histórias pra contar no Jobi, se estiver no Rio, ou na Mercearia São Pedro, se em São Paulo, depois de um fim de semana segurando nada menos do que o Brasil nas mãos.
Ter o Brasil em forma de romance nas mãos quase não é uma metáfora, visto que a saga familiar-patriarcal derramada por Eulálio se imbrica em profundidade com uma certa história do país vista ao mesmo tempo da varanda do poder e da perspectiva amarga de um ex-bacana acossado pela idade provecta e por uma miséria terminal que o reduz ao nível da “escória”, “dessa gente desqualificada”, como ele mesmo diz, com sua costumeira amargura elitista. E tudo isso permeado por cenas que dão a ver a olho nu os mal-abafados conflitos raciais brasileiros, da perspectiva de um narrador marcado por indelével atavismo escravagista. Essa questão do racismo, aliás, rende ao livro alguns de seus mais altos picos artísticos, inclusive em matéria de humor.
Me contorço aqui para reprimir a vontade de contar o que Eulálio diz à namoradinha branca de seu jovem bisneto que lhe saiu misteriosamente negro, depois de ouvi-la gemer e gritar cadelosamente no quarto ao lado, onde se atracava com o garotão. É absurdamente hilária a cena e vale por um ensaio uspiano sobre os aspectos sexuais do racismo made in Brazil. Mas não vou contar, para não estragar o impacto da leitura na fonte.
O Chico escritor está aqui na ponta dos cascos. Com sua habilidade narrativa para administrar ambiguidades e paradoxos no interior da narrativa – o que seu romance anterior, Budapeste, já tinha comprovado sem deixar dúvidas – ele atribui os constantes avanços e recuos no tempo da história às derrapadas e repetições próprias de uma mente senil, como a do seu narrador centenário. O romance, no entanto, segue em frente, lúcido e linear a sua maneira, justapondo histórias do tempo do rei, dos imperadores e das velhas e novas repúblicas, passando pelas ditaduras de Vargas e dos militares, cumprindo programaticamente o dever de casa historiográfico que ele parece ter-se proposto.
Galeria de tipos
Chico dá corpo e voz a um bom número de personagens saborosos, de corte realista mas com discretos contornos caricaturais. É o caso, por exemplo, de um de seus descendentes, o tataraneto, traficante pleiba de alto coturno que me lembrou muito o herói do filme Meu nome não é Johnny, de Mauro Lima. Na galeria dos antepassados, Eulálio capricha na figura da mãe, podre de elitista e dona de uma franqueza altaneira que não poupa ninguém que esteja um centímetro abaixo dela numa escala social caduca e mirabolante. Para se ter uma ideia, a páginas tantas, madame, que prefere falar francês sempre que possível, até com a criadagem, ganha gentis empadinhas de um conviva gaulês, patrão de seu filho. O sujeito não passa de um engenheiro sem nobreza que teve o azar de chegar atrasado a um jantar na casa da aristocrata. Ato contínuo, a soberba matriarca repassa as iguarias popularescas aos empregados da mansão, que as devoram degustando o Bourgogne estragado da adega do finado pai de Eulálio.
Esse Eulálio pai, senador da República Velha e, por sua vez, filho de um figurão do Império (e outro Eulálio), é um dos melhores personagens secundários do livro. Cocainômano que não vive sem os lendários bujões Merck, frequentador dos melhores bordéis parisienses e dissipador crônico da fortuna herdada, lega essa última característica ao filho, que vê seu dinheiro velho rapidamente aplastado pelo dinheiro novo que se espalha pela cidade verticalizando radicalmente seu perfil.
Já deu pra perceber, a essa altura, que o livro de Chico Buarque se deixa ler com avidez e um prazer tão romanesco quanto intelectual. Seu tamanho reduzido, que o levaria a ser confundido com uma novela, esconde uma profusão de trilhas ficcionais e grandes temas subjacentes – o mandonismo desenfreado das elites, a troca de guarda em seu interior, o racismo latente que permeia as relações sociais no país – que, mais do que explicam, encenam os principais períodos da História do Brasil: Colônia, Império, República Velha, período getulista, nova democracia interrompida em 1964 com a ditadura militar, e o Brasilzão global-periférico que emergiu da redemocratização em 1985.
Sérgio Buarque e Gilberto Freyre
Uma pauta historiográfica tão evidente no enredo de Leite derramado faz supor que baixou em Chico Buarque um santo acadêmico compósito, espécie de mescla dos principais explicadores do Brasil, entre eles seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre de Casa grande e senzala e o crítico literário Roberto Schwarz, dos ensaios clássicos sobre Machado de Assis.
Creio que de Gilberto Freyre o livro sorve – e atualiza – uma idéia muito criticada pelo pensamento marxista, e que José Miguel Wisnik sintetiza com perfeição ao comentar sobre seu livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008): “(...) a sociabilidade brasileira, com base na mestiçagem, é para Freyre um remédio – a civilização original nos trópicos – extraído do veneno da violência escravista” (Entrevista a Luiz Zanin, n'O Estadão).
Chico, porém, faz seu narrador chafurdar no veneno da pobreza sem ser redimido pelo remédio da “sociabilidade brasileira, com base na mestiçagem”. Diz Eulálio no ocaso miserável da vida: “Mesmo vivendo em habitação de um só compartimento, num endereço de gente desclassificada, na rua mais barulhenta de uma cidade-dormitório, mesmo vivendo nas condições de um hindu sem casta, em momento algum perdi a linha”. Quer dizer, em nenhum momento deixa de empinar seu nariz aristocrata, apesar de sujo, dando pano para cenas muito engraçadas.
A elite
Sérgio Buarque de Hollanda, de seu lado, talvez enxergasse no percurso de Eulálio o registro literário da extinção da base social e do modo de vida de uma elite rentista que praticava seu portuguesinho escorreito, mantendo a devida distância da fala popular, enquanto exercia seu mandonismo corrupto e ineficiente, marca do poder de origem rural e lusa, segundo o autor do seminal Raízes do Brasil. Caberia como uma luva em Leite derramado a observação feita por Sérgio no fim desse estudo, de 1936, flagrando “o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um novo [tipo de sociedade], que crismamos talvez ilusoriamente de americano (...)”. Aqui, onde se lê americano, entenda-se massificado e vulgar.
Entretanto, o capitão do time de “roteiristas acadêmicos” por trás de Chico Buarque outro não é senão o santo máximo da judaicocristandade literária brasileira: Machadão de Assis, assimilado de forma personalíssima no Leite derramado, sem que seu autor lance mão de nenhum tique machadiano, desses que ginasiano usa em redação para impressionar a professora de português. Em Eulálio Assumpção, assim como em Machado, a eulalia a serviço da memória exibe sólida base culta, e mesmo cultíssima, infiltrada de coloquialismos vintage característicos do falar de certa elite e classe média antigas. Chico tira do armário uma língua deliciosamente inatual, em boa parte devorada pelo ritmo vertiginoso da dinâmica verbal pós-midiática, ou coisa que o valha. Uma iguaria a ser degustada em êxtase pelos apreciadores da última flor do Lácio em versão brasiliana-demodê.
Voltando ao Machado, acho impossível que o leitor brasileiro não identifique no Eulálio buarquiano a cruza bem-sucedida entre dois famosos herdeiros de famílias ricas saídos da pena de Machado: o Brás Cubas voluntarista, inconsequente e cronicamente diletante do romance homônimo, e Bentinho, o jovem e tímido burguês de Dom Casmurro que acaba dando num típico patriarca autoritário, paranóico e vingativo, às voltas com cornos delirantes depois de casado com Capitu. E é lógico que a mais famosa personagem feminina da lit-br se empresta aqui graciosamente de modelo a Matilde, musa-em-chefe do livro, moça linda, de pele castanha e olhos negros, criada na burguesia mas guardando na pele e nos modos (assobia na mesa para chamar o garçom) a marca das legiões excluídas de onde provém.
A capitulina Matilde, aliás, vê-se no centro de uma cena que parece ter sido soprada no ouvido do autor por Roberto Schwarz. Essa, não resisto, vou contar: Matilde está com Eulálio e uns franceses num cabaré com música de orquestra, no entre-guerras, período em que o personagem ainda vive no bem-bom financeiro e amoroso. Um francês do grupo se põe a elogiar em sua própria língua a natureza do país à bela morena carioca, que talvez nem o compreendesse. Narra Eulálio: “Embora o olhasse muito aplicada, sentada na ponta da cadeira, percebi que ela dançava o fox-trote da cintura para baixo”.
Coincidência ou não, é quase a mesma coisa que Roberto Schwarz nota sobre José Dias, o agregado da família de Bentinho, em Dom Casmurro, de Machado de Assis, ao sugerir que sua posição ambígua na família senhorial, ao mesmo tempo interna e subalterna, obrigava-o a funcionar em duas velocidades antitéticas, como um passista de escola de samba a executar movimentos “vagarosos e principescos da cintura para cima, enquanto os pés se dedicam a um puladinho acelerado e diversificado” (“A poesia envenenada do Dom Casmurro”, em Duas meninas, Companhia das Letras, 1997).
Acho divertida – e, claro, refinadíssima – a ideia de incorporar teoria no jogo literário, sem jamais botar nenhum personagem deitando tediosa falação teórica, como fariam escritores vulgares, que sempre os há – se os há! Aqui a teoria é encenada em pura literatura, e não exige que o leitor a identifique, muito pelo contrário. Só não recomendo aos colegas escritores que tentem fazer o mesmo em casa. (Se tentarem, rogo que não venham me mostrar.) Pode dar erradíssimo, com as pernas peludas da teoria aparecendo o tempo todo por baixo da saia da prosa ficcional.
O velho Francisco
Poderia insistir mais um pouco nesse joguinho do quem-é-quem por trás do Leite derramado, mencionando de passagem o Serafim Ponte Grande e suas fantasias sexuais com o Pinto Calçudo, no livro do Oswald Andrade. Eulálio parece ter-se inspirado nelas quando lhe bateu a repentina e caprichosa ideia de sodomizar um criado negro descendente dos escravos de seu avô, outro Eulálio. Mas, como não tenho todo este Idéias à disposição, fecho o assunto apontando uma das mais fortes fontes inspiradoras do livro: a canção O velho Francisco, do próprio Chico.
De fato, são óbvias – e sublimes – as similitudes antitéticas entre seu novo personagem de 100 anos de idade, Eulálio d'Assumpção, e o velho Francisco da canção homônima do compositor, um dos muitos clássicos instantâneos que legou à musica popular. Ambos os macróbios, o do livro e o da canção, poderiam proclamar de boca cheia: “já gozei de boa vida, tinha até meu bangalô”.
A pequena diferença é que, enquanto o eu lírico da canção buarquiana é um ex-escravo que se gaba de ter sido “alforriado pela mão do imperador”, o elitista Eulálio Assumpção descende dos caras que viveram nas costas de africanos cativos, sobre as quais deitavam lambadas de chicote como paga por seus préstimos.
Enfim, se Chico resolveu mesmo atacar de sociólogo e historiador no marco de uma linguagem e uma narrativa essencialmente literárias, com altíssimo rendimento estético – e poético, o que faltou salientar aqui – o fato é que se deu bem. Acho que, em última análise, Chico “fez porque podia”, para citar Bill Clinton (“I did it because I could”), tentando explicar a jornalistas porque tinha dado uns güentos naquela estagiária gordinha dentro da Casa Branca. Chico Buarque, afinal, tem as armas e as ferramentas do melhor da cultura brasileira, tendo nascido no seio dela, e soube dar vida ficcional a isso numa escrita sedutora, fluente mas não caudalosa, que permite muitas e suculentas camadas de leitura, o que deverá deslumbrar ólogos e istas em geral, sem deixar de atrair seu enorme leitorado sequioso do biscoito fino – no bom sentido – que Chico acaba de botar na roda (também no bom sentido).
*Reinaldo Moraes, autor dos romances Tanto Faz, Abacaxi, Órbita dos caracóis e Pornopopéia, a ser lançado em abril pela editora Objetiva
A síndrome do segundo livro
De acordo com Antonio Callado – cujo tirocínio literário não era de se jogar no Rio da Guarda – Chico Buarque só se transformaria em um verdadeiro escritor a partir da publicação do seu terceiro romance (desconte-se aí uma obra que o próprio autor desqualifica, mas não renega, Fazenda modelo, de 1974, chamando-a de “novela pecuária”, seja lá que diabo isso queira dizer).
Callado morreu em 1997 e infelizmente não pôde ler Budapeste, o tal terceiro, que mereceu da crítica especializada, dos colegas de ofício e principalmente do boca-a-orelha dos leitores uma avaliação elogiosa quase unânime, sepultando o juízo rasteiro e preconceituoso do “cada macaco no seu galho”, do “onde já se viu um cantor e compositor escrevendo romance”.
Então, baseando-se nas contas e no acerto da profecia de Antonio Callado, o romance que Chico Buarque ora publica, Leite derramado – com tiragem inicial de 70 mil exemplares e campanha publicitária que prevê quase tudo que costuma envolver esse tipo de estratégia, menos uma entrevista com o autor – é, na verdade, o de número 2.
O que reveste Leite derramado de profundos significados, pois é sabido que a síndrome da segunda obra – que se manifesta quando a primeira alcança uma consagração imediata – pode arruinar, paralisar por longos períodos e, em casos mais graves, silenciar o escritor para sempre. A história da literatura é riquíssima em exemplos desses tipos clínicos.
O remédio encontrado por Chico Buarque foi justamente dar voz incessante a um doente terminal. O resultado derrota a síndrome.
Um 'Casa grande e senzala' em clave íntima
Um escritor com a carreira literária que Chico Buarque vinha construindo até agora – antes da publicação de Leite derramado – não tinha razões para chorar.
Saído em 1991, Estorvo resiste bem à releitura. Seu maior mérito está no domínio exato da narrativa e da palavra, “escrito com engenho e mão leve”, na avaliação do crítico Roberto Schwarz.
O mesmo não se pode dizer a respeito de Benjamim, único dos livros do autor que é narrado em terceira pessoa. O romance não encaixa, assim como o nome dos personagens Ariela Masé, Aliandro Esgarate, Castana Beatriz, G. Gâmbolo e o próprio Benjamim Zambraia. (A lição de Dalton Trevisan é chamar todo mundo de João e Maria.)
Lirismo amargo
Lançado em 2003, seis anos depois de Benjamim, Budapeste é aquilo que se sabe: o melhor romance de Chico Buarque até então. Em que pese a estranheza da história – talvez até por isso mesmo – nele está presente o lirismo nosso velho conhecido do letrista de música popular. Um lirismo um tanto amargo, mas lirismo. Quando o ghost-writer José Costa, numa de suas temporadas na capital húngara, não resiste a deixar palavras desgarradas na secretária eletrônica da sua mulher que mora no Brasil – marimbondo, bagunça, adstringência, Guanabara, Pão de Açúcar – o que elas fazem é buscar notas musicais.
Ainda em Budapeste, há uma definição (involuntária?) da forma narrativa de Chico Buarque, que se dá numa cena-chave logo na primeira página do romance, quando José Costa, perdido na estação de metrô e atrasado para um encontro, resolve telefonar para a amante Kriska, que também é sua professora de húngaro. Diz ele: “Aí estou chegando quase...”. Ela pede para repetir a frase algumas vezes e depois cai na gargalhada, antes de explicar que entendeu que ele “chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho”. Pois é assim que, por mais lineares que elas sejam, Chico Buarque revela as suas histórias, pouco a pouco, num processo que torna o leitor uma presa.
Pois, mais que em todos os livros anteriores do autor, Leite derramado mostra primeiro o nariz, a orelha, depois o joelho emperrado do narrador em primeira pessoa, Eulálio d'Assumpção, este um nome perfeito por entregar de cara a elevada posição social a que pertence o personagem (esqueça a lição de Dalton Trevisan). Muito velho e doente, vivendo à base de morfina e outras drogas, ele está numa cama de hospital e monologa sem parar. Quem o ouve, não se sabe ao certo, tudo é nebuloso; pode ser a filha, uma das enfermeiras, o moribundo do lado, as paredes, o teto.
Membro de tradicional família carioca, Eulálio d'Assumpção – “já lhe disse que o P de Assumpção é mudo. Se você o pronuncia dá a impressão de deboche” – não se limita a recordar a longa vida. Relembra sua linhagem desde os ancestrais portugueses, o avô barão do Império, o pai senador da Primeira República, o genro oriundi e trambiqueiro, o neto que vira “comunista” durante a ditadura militar, até o tataraneto garotão e traficante. É, portanto, uma saga familiar, abrangendo dois séculos da História do Brasil. Mas mostrada de maneira embaralhada e delirante, e com concisão doentia – menos de 200 páginas. (A lição de P. G. Wodehouse é que um romance deve ter 186 páginas. E ponto final.)
Rol de sujeiras
Cabe coisa à beça no pouco espaço enfeixado. “Compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção, destruição da natureza, deliquência” frequentam o rol de sujeiras anotado pela crítica Leyla Perrone-Moisés no texto de divulgação do livro distribuído à imprensa. E ainda dava para acrescentar muitas outras manchas – delação, abuso de autoridade, exploração religiosa, esnobismo, falta de planejamento urbanístico etc. etc. – do país que possui o céu límpido.
Da leitura, resta uma impressão geral de pessimismo. A decadência é absoluta. O narrador perde tudo: o palacete em Botafogo, vendido a uma embaixada; o chalé em Copacabana, substituído por um edifício; a fazenda transformada em favela; o jazigo no São João Batista, que virou “um monstrengo de mármore lilás, habitado por um defunto de nome turco”. Sem ter onde cair morto, Assumpção cheira cocaína – a “neve” que lhe foi apresentada, ele ainda adolescente, pelo pai, numa viagem aos Alpes suíços – agora servida pelo tataraneto – “vai, vovô” – no dia dos seus 100 anos: “E fui mesmo, de um tiro só, foi muito mais fácil aspirar a coca que soprar as velas do bolo”. Travadaço, o velho decide ir à rua, o que não fazia há tempo, e dá de frente com dois policiais dormindo nos bancos reclinados da radiopatrulha. Cena mais atualmente carioca, impossível. O engraçado ou patético é que Assumpção bate na lataria e grita: “Eia!”.
Mas Leite derramado não é só o mundo cão batido de certa literatura que se faz hoje no país. É sobretudo uma história de paixão mal vivida e resolvida. O que mais doeu em Assumpção foi perder a mulher, Matilde, o único bem que parece ter-lhe importado na vida. Lembrar e contar repetidas vezes o primeiro encontro entre os dois não é conversa de macróbio. Na Igreja da Candelária, durante as exéquias do pai assassinado, ele a vê no coral que canta o Réquiem, vestida de congregada mariana: “Uma roupa rígida feito uma armadura, estranha mesmo ao corpo dela, e um corpo nu ali embaixo, poderia até dançar sem dar na vista”. De tão excitado com a visão, ele não tem como se levantar sem passar vexame e desiste da comunhão.
Assumpção – que deitado na cama, mais pra lá do que pra cá, a repassar toda sua vida, já tinha um quê e um emplasto de Brás Cubas – assume de vez a porção Bentinho e passa a ver Matilde como Capitu. Sem olhos de ressaca, mas com “olhar de pingue-pongue”, “a mais moreninha de sete irmãs” (grifo deste resenhista), a que gosta de maxixe e samba, a que se junta aos empregados na cozinha para fazer as refeições, a que “pretejou” o sangue da família, a do leite tragicamente derramado. Nas relações entre Assumpção e Matilde, o romance se aproxima de um Casa grande e senzala em clave íntima. Machado de Assis e Gilberto Freyre, juntos e misturados.
Na prateleira
A se destacar na obra literária de Chico Buarque, sempre esteve a linguagem – ou melhor, o apuro da linguagem com a busca flaubertiana pelo mot juste – a qual faz palatável a leitura até de um livro malfadado como Benjamim. Em Leite derramado, algumas palavras e expressões parecem ter saído do sótão e, depois de uma escovada, expostas na prateleira da sala, úteis outra vez, especialmente ao discurso de Assumpção, um homem educado nos tempos dos dicionários Moraes e Caldas Aulete: deveras, setemesinha, moisés, azorrague, lamber sabão.
'Leite derramado' terá longa vida
*Alvaro Costa e Silva, editor do Ideias & Livros.
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/28/e280327996.asp